No papel em branco que deveria ser preenchido com o colorido do desenvolvimento pedagógico e das novas descobertas, o problema histórico da falta de vagas em creches deixa apenas um grande e cinza ponto de interrogação. Nesse cenário, o Rio Grande do Sul não foge à regra e é o sétimo Estado com o maior déficit de vagas em creches no Brasil.
São 38.835 crianças de zero a três anos aguardando, conforme levantamento divulgado pelo Gabinete de Articulação para a Efetividade da Educação (Gaepe-Brasil) e pelo Ministério da Educação (MEC). No país, o déficit é de 632 mil vagas.
Entre os locais com a maior demanda reprimida estão São Paulo (88.854 vagas), Minas Gerais (63.470 vagas) e Paraná (59.373 vagas). Os dados foram coletados entre junho e agosto deste ano, com a participação de todos os municípios do país. Na contramão, a menor fila é a de Roraima (1.451 vagas).
Em relação à pré-escola, que considera crianças de quatro a cinco anos, o Estado gaúcho é o nono colocado, com déficit de 3.418 vagas. O acesso a creches e pré-escolas é direito constitucional, estabelecido em tratados internacionais e marcos legais nacionais. A Emenda Constitucional 59/2009 estabelece a obrigatoriedade de matrícula a partir dos quatro anos.
Pela Constituição Federal, os municípios devem atuar prioritariamente na Educação Infantil e no Ensino Fundamental, enquanto os Estados têm o enfoque nos ensinos Fundamental e Médio. Dessa forma, o tema da Educação Infantil será um dos principais desafios enfrentados pelos próximos prefeitos brasileiros. E há metas do Plano Nacional de Educação (PNE), prorrogado até 31 de dezembro de 2025, que devem ser cumpridas.
Estado não está batendo as metas do PNE
Conforme o PNE, esperava-se a universalização da Educação Infantil na pré-escola para crianças de quatro a cinco anos, além do atingimento de 50% de atendimento das crianças de zero a três anos em creches.
A pesquisa divulgada pelo MEC, no entanto, não apresenta dados de matrículas e populacionais das faixas etárias nos municípios, o que dificulta o cruzamento de informações. Segundo especialistas, os dados apresentados no estudo são referentes apenas às filas de espera, ou seja, casos em que famílias buscaram a vaga e não obtiveram.
A plataforma Primeira Infância, que reúne dados do IBGE e Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), indica que em 2023 o atendimento foi de 41,55% nas creches e 86,51% na pré-escola no RS. Em termos de comparação, as médias no Brasil no mesmo ano foram de de 37,76% na etapa creche e 89,95% na pré-escola.
TCE-RS defende que poder local assuma responsabilidade na área
Acompanhado por diferentes entidades, o tema da Educação Infantil tem recebido atenção do Tribunais de Contas (TCE) e órgãos relacionados. No Estado, são quase duas décadas de atuação nesse campo pelo TCE-RS, com análises de relatórios de auditoria, orientações e levantamentos.
Para o conselheiro ouvidor do TCE-RS, vice-presidente da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon), Cezar Miola, é necessário um esforço colaborativo entre todos os entes da federação para superar essa lacuna, sendo relevante que o poder local assuma sua grande responsabilidade na área.
— A melhoria das condições de acesso e de qualidade da Educação Infantil requer uma atuação efetiva e coordenada entre os diferentes atores institucionais, com a participação das famílias e da sociedade — aponta.
Em tempos de campanha eleitoral, Miola destaca que é comum surgirem "propostas ambiciosas e abrangentes", mas que é essencial que os cidadãos se concentrem nas prioridades estabelecidas pela Constituição de 1988, que define a proteção e o desenvolvimento de crianças e adolescentes como prioridade.
— É de suma importância que a prioridade para a primeira infância (...) se traduza numa realidade concreta, a começar pelos orçamentos, que em breve serão remetidos às Câmaras de Vereadores. Atualmente, menos de 40% dessas crianças têm acesso a creches, e muitas vezes apenas por um turno. Esse cenário é uma evidência clara de que ainda há muito a ser feito para assegurar que todas tenham garantido o direito à Educação Infantil — conclui.
Seduc cita trabalho articulado com municípios gaúchos
Em relação ao tema, a Secretaria Estadual da Educação (Seduc) informa que trabalha de forma articulada e conjunta com os municípios. Entre os exemplos, a secretaria cita o Programa Alfabetiza Tchê, que tem adesão de 100% das cidades gaúchas, e é uma política pública que surgiu para garantir que todos os estudantes das redes estadual e municipal do RS estejam alfabetizados até o final do segundo ano do Ensino Fundamental, contando com o apoio da Undime e da Famurs.
Sobre a infraestrutura, o Estado afirma que tem colocado à disposição dos municípios, como em Porto Alegre, espaços para abertura de creches. “A Seduc entende que a Educação Infantil é um período essencial para a formação cognitiva e emocional da criança e apoia a união de esforços para o acolhimento e a proteção infantil”, conclui, em nota.
Com crianças fora da escola, preocupação da Defensoria Pública é com a insegurança
De acordo com a Defensoria Pública do RS, que acompanha o tema em diferentes cidades gaúchas, o déficit na etapa creche é verificado em Porto Alegre e outros municípios da Região Metropolitana. Em 2023, o Centro de Orientação e Fiscalização de Políticas Públicas do TCE-RS apurou percentuais de atendimento de 39,4% na Capital, 23,3% em Gravataí, 24,7% em Viamão, 29,4% em Canoas e 31% em Guaíba.
— O que é muito preocupante, se considerarmos que essa é uma camada da população que precisa trabalhar, precisa sair em busca de recurso. Enquanto isso, as crianças ficam desprotegidas, com algum vizinho, alguém da comunidade. É uma insegurança muito grande — afirma a dirigente do Núcleo de Defesa da Criança e do Adolescente (Nudeca) da Defensoria Pública do RS, Paula Simões Dutra de Oliveira.
Enchente dificultou ainda mais o cenário no Estado
Outra ressalva feita por Paula é relativa à tragédia ambiental que atingiu o RS com a enchente de maio, comprometendo instituições escolares e vagas já preenchidas na rede pública. Com isso, os mutirões de vagas promovidos pela Defensoria Pública passaram a considerar a catástrofe climática.
— Defensores de outros Estados vieram para proporcionar um auxílio. Estamos prevendo uma nova ação para novembro. E, em um segundo momento, a nossa ideia é organizar um movimento em nível nacional, porque esse é um problema de todo o país. Acredito que no ano que vem a gente consiga implementar, como um Dia D para encaminhamento — detalha.
Enquanto isso, o atendimento para quem está aguardando na fila pode ser feito pelo e-mail nudeca@defensoria.rs.def.br ou presencialmente na sede da Defensoria (Avenida Sete de Setembro, 666, Centro Histórico, Porto Alegre), com agendamento pelo (51) 3201-0749.
Ministério Público fiscaliza e orienta municípios
Pelo Ministério Público do RS (MPRS), as demandas da Educação Infantil são acompanhadas por meio das Promotorias Regionais de Educação, que atuam com a fiscalização e o acompanhamento de repactuações de obras com recursos oriundos do governo federal, para construção e/ou ampliação das escolas, possibilitando a ampliação da oferta de vagas.
— Através dos mapeamentos realizados, é possível que o MP expeça recomendações aos municípios, com a finalidade de fomentar a implantação de políticas públicas nas áreas que apresentam maior déficit, fazendo cumprir a legislação sobre o tema — sublinha a promotora de Justiça Cristiane Della Méa Corrales, coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Educação, Infância e Juventude do MPRS.
Como exemplo, Cristiane cita a recomendação para que municípios e a Secretaria Estadual de Educação realizarem a implantação de uma ferramenta digital para a divulgação da lista de espera da educação básica, incluindo a etapa creche.
— Além disso, há realização de reuniões com os gestores dos municípios para discussão do tema e o ajuizamento de ações, individuais e coletivas, para a garantia do direito à educação das crianças inscritas em lista de espera — conclui.
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Fonte:
GZH
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